segunda-feira, 21 de março de 2011

O Conto da ilha desconhecida - Jose Saramago


Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um
barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era
a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à
porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam
a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das
petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar
contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que
notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as
pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não
atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir
saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se
calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundosecretário,
este chamava o terceiro, que mandava o primeiroajudante,
que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí
fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo
ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e
perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante
dizia o que queria e ficava à porta, à espera de que o
requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário,
até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os
obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno
sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando
resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao
primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a
encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro,
sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que
despachava sim ou não conforme estivesse de maré.
Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não
se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe
perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem,
em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título,
uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero
falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta
dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizerlhe
que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber
o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no
limiar, tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e
sair, só por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se
tivermos em consideração que, de acordo com a pragmática das
portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez,
donde resultava que, enquanto houvesse alguém à espera da
resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de
expor as suas necessidades ou as suas ambições. À primeira
vista, quem ficava a ganhar com este artigo do regulamento
era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o
vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e
mais descanso, para receber, contemplar e guardar os
obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito,
porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta
estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar
gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno,
ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de
obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da
ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o
rei, ao cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das
petições, para saber o que queria o intrometido que se havia
negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias
burocráticas.
Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela
perguntou, Toda, ou só um bocadinho. O rei duvidou por um
instante, na verdade não gostava muito de se expor aos ares
da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser
indigno da sua majestade, falar com um súbdito através de uma
nesga, como se tivesse medo dele, mormente estando a assistir
ao colóquio a mulher da limpeza, que logo iria dizer por aí
sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que queria
um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a
ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera.
Estes sinais de que finalmente alguém vinha atender, e que
portanto a praça não tardaria a ficar desocupada, fizeram
aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade
do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal
ele vagasse.
O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia
sucedido desde que ele andava de coroa na cabeça) causou uma
surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas também à
vizinhança que, atraída pelo repentino alvoroço, assomara às
janelas das casas, no outro lado da rua. A única pessoa que
não se surpreendeu por aí além foi o homem que tinha vindo
pedir um barco. Calculara ele, e acertara na previsão, que o
rei, mesmo que demorasse três dias, haveria de sentir-se
curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com
notável atrevimento, o mandara chamar. Repartido pois entre a
curiosidade que não pudera reprimir e o desagrado de ver
tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou
três perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que
não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho
mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira
pergunta.
Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto
desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegarlhe
uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se
sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha,
pois, além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade
alguns trabalhos menores de costura no palácio, como passajar
as peúgas dos pajens. Mal sentado, porque a cadeira de
palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a
procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora
encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, enquanto o
homem que queria um barco esperava com paciência a pergunta
que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se
saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente
se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da
mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida,
respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei
disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco
varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria
bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu
o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi
que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão
todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E
que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se
eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem
ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A
ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe,
Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha
desconhecida. E vieste aqui para me pedires um barco, Sim,
vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to
dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino,
e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes
pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer,
perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que
eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com
os meus pilotos e os meus marinheiros, não te peço
marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha
desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só
te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as
desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se
deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem
esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os
aspirantes à porta das petições, em quem, minuto após minuto,
desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo,
e mais para se verem livres dele do que por simpatia
solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o
barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. O
rei abriu a boca para dizer à mulher da limpeza que chamasse
a guarda do palácio a vir restabelecer imediatamente a ordem
pública e impor a disciplina, mas, nesse momento, as vizinhas
que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo,
gritando como os outros, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco.
Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e
preocupado com o que, neste meio-tempo, já haveria perdido na
porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor
silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás
de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as
ilhas conhecidas. Os gritos de aplauso do público não
deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que viera
pedir um barco, aliás o movimento dos lábios tanto poderia
ser Obrigado, meu senhor, como Eu cá me arranjarei, mas o que
distintamente se ouviu foi o dito seguinte do rei, Vais à
doca, perguntas lá pelo capitão do porto, dizes-lhe que te
mandei eu, e ele que te dê um barco, levas o meu cartão. O
homem que ia receber um barco leu o cartão-de-visita, onde
dizia Rei por baixo do nome do rei, e eram estas as palavras
que ele havia escrito sobre o ombro da mulher da limpeza,
Entrega ao portador um barco, não precisa ser grande, mas que
navegue bem e seja seguro, não quero ter remorsos na
consciência se as coisas lhe correrem mal. Quando o homem
levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que iria
agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a
mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem
desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos
podiam, enfim avançar, nem valeria a pena explicar que a
confusão foi indescritível, todos a quererem chegar ao sítio
em primeiro lugar, mas com tão má sorte que a porta já estava
fechada outra vez. A aldraba de bronze tornou a chamar a
mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza não está, deu a
volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das
decisões, que é raro ser usada, mas quando o é, é. Agora sim,
agora pode-se compreender o porquê da cara de caso com que a
mulher da limpeza havia estado a olhar, foi esse o preciso
momento em que ela resolveu ir atrás do homem quando ele se
dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que já
bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha
chegado a hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos
é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água
nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda
sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de
si a futura encarregada das baldeações e outros asseios,
também é deste modo que o destino costuma comportar-se
connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para
tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se,
não há mais nada que ver, é tudo igual.
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca,
perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se
a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que
iria ser seu, grande já se sabia que não, o cartão-de-visita
do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam
de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra,
tão-pouco poderia ele ser tão pequeno que resistisse mal às
forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido
categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram
estas as suas formais palavras, assim implicitamente
excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo
bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual,
não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se
encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali,
escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu
os olhos pelos barcos atracados, Para meu gosto, aquele,
pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia
sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão
do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto
a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de
fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem
respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, não to
aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer
barco; Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um
desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa
respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu
não és marinheiro, Se tenho a linguagem é como se o fosse. O
capitão tornou a ler o cartão do rei, depois perguntou,
Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura
da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo
me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É
estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já
não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não
ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são
desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas, Mas tu, se
bem entendi, vais à procura de uma onde nunca ninguém tenha
desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim,
às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a
acontecer, deverias escrever nos anais do porto que o ponto a
que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se
chega, não serias quem és se não o soubesses já. O capitão do
porto disse, Vou dar-te a embarcação que te convém, Qual é
ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que
toda a gente andava à procura de ilhas desconhecidas, Qual é
ele, Julgo que até encontrou algumas, Qual, Aquele. Assim que
a mulher da limpeza percebeu para onde o capitão apontava,
saiu a correr de detrás dos bidões e gritou, É o meu barco, é
o meu barco, há que perdoar-lhe a insólita reivindicação de
propriedade, a todos os títulos abusiva, o barco era aquele
de que ela tinha gostado, simplesmente. Parece uma caravela,
disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no
princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e
adaptações que a modificaram, Mas continua a ser uma
caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar, E tem
mastros e velas, Quando se vai procurar ilhas desconhecidas,
é o mais recomendável. A mulher não se conteve, Para mim não
quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, não te lembras de
mim, não tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza,
A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, não
havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a
limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente
queria já foram abertas e porque de hoje em diante só
limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a
ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões,
Sendo assim vai para a caravela, vê como está aquilo, depois
do tempo que passou deve precisar de uma lavagem, e tem
cuidado com as gaivotas, que não são de fiar, não queres vir
comigo conhecer o teu barco, por dentro, Tu disseste que era
teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é
provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior
maneira de gostar. O capitão do porto interrompeu a conversa,
Tenho de entregar as chaves ao dono do barco, a um ou a
outro, resolvam-se, a mim tanto se me dá, Os barcos têm
chave, perguntou o homem, Para entrar, não, mas lá estão as
arrecadações e os paióis, e a escrivaninha do comandante com
o diário de bordo, Ela que se encarregue de tudo, eu vou
recrutar a tripulação, disse o homem, e afastou-se.
A mulher da limpeza foi ao escritório do capitão para
recolher as chaves, depois entrou no barco, duas coisas lhe
valeram aí, a vassoura do palácio e a prevenção contra as
gaivotas, ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que
ligava a amurada ao cais e já as malvadas estavam a
precipitar-se sobre ela aos guinchos, furiosas, de goela
aberta, como se ali mesmo a quisessem devorar. não sabiam com
quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as
chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e,
redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos tempos
antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou
no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por
toda a parte, muitos deles abandonados, outros ainda com
ovos, e uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, à espera
da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um
barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este
aspecto, como se fosse um galinheiro, disse. Atirou para a
água os ninhos vazios, quanto aos outros deixou-os ficar, até
ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a coberta.
Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e
procedeu a um exame minucioso do estado das costuras, depois
de tanto tempo sem irem ao mar e sem terem de suportar os
esticões saudáveis do vento. As velas são os músculos do
barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso
mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso
regularmente, abrandam, amolecem, perdem o nervo, E as
costuras são como os nervos das velas, pensou a mulher de
limpeza, contente por estar a aprender tão depressa a arte de
marinharia.
Achou esgarçadas algumas bainhas, mas contentou-se com
assinalá-las, uma vez que para este trabalho não podiam
servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos
pajens antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos
outros paióis, viu logo que estavam vazios. Que o da pólvora
estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que
primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe
importou nada, de facto não está escrito em nenhuma lei, pelo
menos até onde a sabedoria duma mulher da limpeza é capaz de
alcançar, que ir em busca de uma ilha desconhecida tenha de
ser forçosamente uma empresa de guerra. Já a ralou, e muito,
a falta absoluta de munições de boca no paiol respectivo, não
por si própria, que estava mais do que acostumada ao mau
passadio do palácio, mas por causa do homem a quem deram este
barco, não tarda que o sol se ponha, e ele a aparecer-me aí a
clamar que tem fome, que é o dito de todos os homens, mal
entram em casa, como se só eles é que tivessem estômago e
sofressem da necessidade de o encher, E se já traz
marinheiros para a tripulação, que são uns ogres a comer,
então é que não sei como nos iremos governar, disse a mulher
da limpeza.
não valia a pena ter-se preocupado tanto. O sol havia acabado
de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco
surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém
vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo
à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar
de como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está
descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros,
perguntou ela, não veio nenhum, como podes ver, Mas deixasteos
apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me
que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as
houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e
da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em
aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se
ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes
respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste
da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha
desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela
existe, Tanta como de ser tenebroso o mar, Neste momento,
visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um
incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão
tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as
águas, e não é verdade, Que pensas fazer se te falta a
tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu
oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu,
Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como
agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero
encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando
nela estiver, não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a
saber quem és, O filósofo do rei quando não tinha que fazer,
ia sentar se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos
pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o
homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que
sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é
necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se
não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres
tu dizer, não é a mesma coisa. O incêndio do céu ia
esmorecendo, a água arroxeou-se de repente, agora nem a
mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso,
pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as
filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe
pagam, agora vamos nós comer, mas a mulher não esteve de
acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco, só o conheces por
fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que
estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste
água aberta, No fundo vê-se alguma de mistura com o lastro,
mas isso parece que é próprio, faz bem ao barco, Como foi que
aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando
disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no
mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre
tive a ideia de que para a navegação só há dois mestres
verdadeiros, um que é o mar, outro que é o barco, E o céu,
estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As
nuvens, O céu, Sim, o céu.
Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta pelo
barco, uma caravela, mesmo transformada, não dá para grandes
passeios, É bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir
arranjar tripulantes suficientes para a manobra, terei de ir
dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo à
primeira contrariedade, A primeira contrariedade foi estar à
espera do rei três dias, e não desisti, Se não encontrares
marinheiros que queiram vir, cá nos arranjaremos os dois,
Estás doida, duas pessoas sozinhas não seriam capazes de
governar um barco destes, eu teria de estar sempre ao leme, e
tu, nem vale a pena estar a explicar-te, é uma loucura,
Depois veremos, agora vamos mas é comer. Subiram para o
castelo de popa, o homem ainda a protestar contra o que
chamara loucura, e, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel
que ele tinha trazido, um pão, queijo duro, de cabra,
azeitonas, uma garrafa de vinho. A lua já estava meio palmo
sobre o mar, as sombras da verga e do mastro grande vieram
deitar-se-lhes aos pés. É realmente bonita a nossa caravela,
disse a mulher, e emendou logo, A tua, a tua caravela,
Desconfio que não o ser por muito tempo, Navegues ou não
navegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-lha para ir
procurar uma ilha desconhecida, Mas estas coisas não se fazem
do pé para a mão, levam o seu tempo, já o meu avô dizia que
quem vai ao mar avia-se em terra, e mais não era ele
marinheiro, Sem tripulantes não poderemos navegar, Já o
tinhas dito, E há que abastecer o barco das mil coisas
necessárias a uma viagem como esta, que não se sabe aonde nos
levará, Evidentemente, e depois teremos de esperar que seja
boa a estação, e sair com a boa maré, e vir gente ao cais a
desejar-nos boa viagem, Estás a rir-te de mim, Nunca me riria
de quem me fez sair pela porta das decisões, Desculpa-me, E
não tornarei a passar por ela, suceda o que suceder. O luar
iluminava em cheio a cara da mulher da limpeza, É bonita,
realmente é bonita, pensou o homem que desta vez não estava a
referir-se à caravela. A mulher, essa, não pensou nada, devia
ter pensado tudo durante aqueles três dias, quando entreabria
de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava
lá fora, à espera. não sobrou migalha de pão ou de queijo,
nem gota de vinho, os caroços das azeitonas foram atirados
para a água, o chão está tão limpo como ficara quando a
mulher da limpeza lhe passou por cima o último esfregão. A
sereia de um paquete que saía para o mar soltou um ronco
potente, como deviam ter sido os do leviatã, e a mulher disse
Quando for a nossa vez, faremos menos barulho. Apesar de
estarem no interior da doca, a água ondulou um pouco à
passagem do paquete, e o homem disse, Mas baloiçaremos muito
mais. Riram os dois, depois ficaram calados, passado um
bocado um deles opinou que o melhor seria irem dormir, não é
que eu tenha muito sono, e o outro concordou, Nem eu, depois
calaram-se outra vez, a lua subiu e continuou a subir, em
certa altura a mulher disse, Há beliches lá em baixo, o homem
disse, Sim, e foi então que se levantaram, que desceram à
coberta, aí a mulher disse, Até amanhã, eu vou para este
lado, e o homem respondeu, E eu vou para este, até amanhã,
não disseram bombordo nem estibordo, decerto por estarem
ainda a praticar na arte. A mulher voltou atrás, Tinha-me
esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela,
Encontrei-os quando andava a limpar, o que não tenho é
fósforos, Eu tenho, disse o homem. Ela segurou as velas, uma
em cada mão, ele acendeu um fósforo, depois, abrigando a
chama sob a cúpula dos dedos curvados, levou-a com todo o
cuidado aos velhos pavios, a luz pegou, cresceu lentamente
como faz o luar, banhou a cara da mulher da limpeza, nem
seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela
pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha
desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos
sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe
uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o
mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase
que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo,
deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à ideia outras frases,
mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera
que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher.
Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no
sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a
encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos num barco
enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as
proporções das coisas e as suas distâncias, separa as
pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem
uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube
como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a
estibordo.
Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou
toda a noite a sonhar.
Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas
triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre
as ondas, enquanto ele manejava a roda do leme e a tripulação
descansava à sombra. não percebia como podiam ali estar os
marinheiros que no porto e na cidade se tinham recusado a
embarcar com ele para ir à procura da ilha desconhecida,
provavelmente arrependeram-se da grosseira ironia com que o
haviam tratado. Via animais espalhados pela coberta, patos,
coelhos, galinhas, o habitual da criação doméstica, debicando
os grãos de milho ou roendo as folhas de couve que um
marinheiro lhes atirava, não se lembrava de quando os tinha
trazido para o barco, fosse como fosse era natural que ali
estivessem, imaginemos que a ilha desconhecida é, como tantas
vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor ser jogar
pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e
agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que
persegui-lo por montes e vales. Do fundo do porão veio agora
um coro de relinchos de cavalos, de mugidos de bois, de
zurros de asnos, as vozes dos nobres animais necessários para
o trabalho pesado, e como foi que vieram eles, como podem
estar numa caravela onde a tripulação humana mal cabe, de
súbito o vento deu uma guinada, a vela maior bateu e ondulou,
por trás dela estava o que antes não vira, um grupo de
mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas
quantos os marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de
mulheres, ainda não chegou o tempo de se ocuparem doutras,
está claro que isto só pode ser um sonho, na vida real nunca
se viajou assim. O homem do leme buscou com os olhos a mulher
da limpeza e não a viu, Talvez esteja no beliche de
estibordo, a descansar da lavagem da coberta, pensou, mas foi
um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também não
saiba como o sabe, que ela à última hora não quis vir, que
saltou para o cais, dizendo de lá, Adeus, adeus, já que só
tens olhos para a ilha desconhecida, vou-me embora, e não era
verdade, agora mesmo andam os olhos dele a procurá-la e não a
encontram.
Neste momento o céu cobriu-se e começou a chover, e, tendo
chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras
de sacos de terra alinhados ao longo da amurada, não estão
ali porque se suspeite que não haja terra bastante na ilha
desconhecida, mas porque assim se ganhará tempo, no dia em
que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de
fruto, semear os grãos das pequenas searas que vão amadurecer
aqui, enfeitar os canteiros com as flores que desabrocharão
destes botões. O homem do leme pergunta aos marinheiros que
descansam na coberta se avistam alguma ilha desconhecida, e
eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas
que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada
que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear,
uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que aqui não
se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida,
perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que
não existe, não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos
do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por
conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis
ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a
navegação, Anda vamos à procura de um sítio melhor para viver
e resolvemos aproveitar a tua viagem, não sois marinheiros,
Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco,
Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina
a navegar. Então o homem do leme viu uma terra ao longe e
quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de
uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado
do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido
marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam
desembarcar, Esta é uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos
se não nos levares lá. Então, por si mesma, a caravela virou
a proa em direcção à terra, entrou no porto e foi encostar à
muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o homem do leme, acto
contínuo saíram em correnteza, primeiro as mulheres, depois
os homens mas não foram sozinhos, levaram com eles os patos,
os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e os
cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e
se foram do barco transportando no bico os seus gaivotinhos,
proeza que não tinha sido cometida antes, mas há sempre uma
vez. O homem do leme assistiu à debandada em silêncio, não
fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no
deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as
trepadeiras que se enrolavam nos mastros e pendiam da amurada
como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se
rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta
era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que
venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano
agrícola. Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que
não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a
sonhar, e se no sonho lhe aparecesse um pedaço de pão ou uma
maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores
já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas
içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas
copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma
floresta que navega e se balanceia nas ondas, uma floresta
onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam
estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz,
talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la.
Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a
foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas
que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à
mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos,
confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de
bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de
nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de
um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda
faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A
Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário